Os olhos da ex-lavradora Maria de Fátima Marinelli, de 68 anos, molhavam a camiseta branca com a foto do amor de sua vida, o trabalhador rural Nativo da Natividade de Oliveira. Ela, que é ex-cortadora de cana-de-açúcar, tomou especial cuidado também para não molhar o documento que recebeu nessa quarta-feira (3). 
Maria de Fátima Marinelli, de 68 anos, recebe certidão de óbito retificada do marido Nativo de Oliveira, morto na ditadura - Foto Luiz Cláudio/Agência Brasil
O documento foi a certidão de óbito retificada, em que o governo brasileiro admite que Oliveira foi assassinado por um agente do Executivo.
“Morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política por regime ditatorial instaurado em 1964”, diz a certidão, entregue em evento no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Nativo era ativista na década de 1970 e representante dos trabalhadores em Carmo do Rio Verde (GO). Ele foi assassinado em 1985, último ano da ditadura no Brasil. Segundo a investigação da época, documentada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV, página 1990), o executor foi um pistoleiro da região e o mandante teria sido o prefeito da cidade, Roberto Pascoal Liégio.
Receber o novo documento das mãos da ministra Macaé Evaristo trouxe emoções fortes e também alívio para a família inteira.
“A morte do meu marido é de uma dor que não sei explicar. Esse atestado é muito especial pra gente porque só nós sabemos o que passamos”, diz a viúva. Os dois filhos eram crianças na época, e a família passou por privações.
Como o executor foi um pistoleiro, demorou para que houvesse vínculo da morte a um agente do Estado. As crianças, inclusive, acabaram ajudando na lida na roça para sobreviver.
Os filhos, hoje, Eduardo, de 51 anos, e Luciane Rodrigues, de 52, recordam que o pai era muito ameaçado porque organizava os trabalhadores e isso contrariava os proprietários de terra. . “Não pudemos fazer o que meu pai queria. Ele pedia para a gente estudar”, diz Eduardo, que é servidor. Luciane, que trabalha como costureira, afirma que precisou sair da cidade na época porque eles não conseguiam emprego em lugar algum.
Além deles, mais 27 famílias de vítimas de ditadura receberam a certidão de óbito retificada. A ministra Macaé Evaristo disse aos descendentes, amigos e representantes das pessoas mortas e desaparecidas que a luta pelo direito à memória, à verdade, à justiça e à reparação não deve ser uma pauta apenas de governo, mas da sociedade brasileira. Os familiares das vítimas pedem que mais documentos relativos à ditadura sejam tornado públicos para o país.
Ao todo, pelo menos 434 pessoas foram consideradas mortas em função da luta contra a ditadura. Macaé defendeu que é preciso contar e recontar todos os dias o que se passou no período de opressão para que o Brasil não tenha dúvida sobre as violações de direitos que ocorreram. Ela lembrou que já houve a entrega de 63 certidões em Minas Gerais e 102 em São Paulo.
“A anotação da causa da morte, em decorrência de graves violações de direitos humanos geradas pelo Estado brasileiro, é a resposta da democracia contra a opressão”. A presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, disse que estão previstas pelo menos mais duas entregas de certidões retificadas no ano que vem.
Ela destacou que o ato honra a memória das mulheres e homens que lutaram contra a opressão e foram comprometidos com o ideal maior de justiça social.
“É a memória deles que sempre será lembrada e homenageada. Já os donos dos coturnos e burocratas que os pisotearam, eles serão lembrados apenas num lixo da história”, afirmou.
A presidente da comissão destaca que o caminho para respeitar a memória das vítimas e de suas famílias tem ocorrido passo a passo desde 1995, quando a Lei 9.140 reconheceu como mortas as pessoas que estavam desaparecidas no regime militar.
A presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga - Foto Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Entre essas pessoas desaparecidas, Demerval da Silva Pereira foi morto em janeiro de 1974 no Araguaia. No evento de quarta-feira, em Brasília, a sobrinha dele, a advogada baiana Andréia Pereira registrou que a família sofreu “terrivelmente” com a ausência e com a falta de informação.
Após a captura de Demerval, ela explica que a tristeza tomou conta da casa. O pai dela sofreu de depressão e a avó também. Ambos morreram. Depois que Andréia entrou para a faculdade, passou a procurar saber sobre a brutalidade e as informações disponíveis sobre as torturas que o tio sofreu.
“Não tenho mais esperança de encontrar o corpo dele, que foi uma das primeiras pessoas a serem reconhecidas como vítimas da ditadura”, disse emocionada a sobrinha.
No auditório do Ministério dos Direitos Humanos, onde foi entregue a certidão retificada, os familiares olharam com saudade as fotos pregadas na parede. Entre essas pessoas, a enfermeira Sueli Damasceno, de 72 anos, sorriu e chorou diante da imagem em preto e branco do irmão, o operário e estudante de medicina Jorge Aprígio de Paula.
Familiares de mortos e desaparecidos recebem certidão de óbito retificada de parentes mortos na ditadura - Foto Luiz Cláudio/Agência Brasil
Ele foi assassinado em 1º de abril de 1968 no centro do Rio de Janeiro, em meio à manifestação em repúdio à morte do estudante secundarista Édson Luiz, no dia 28 de março do mesmo ano. Jorge Aprígio, segundo o relato da Comissão Nacional da Verdade (página 234) tomou um tiro pelas costas durante repressão ao ato por soldados do Exército.
Sueli lembra que a notícia da morte caiu como uma bomba na casa da família humilde, moradora de área periférica em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Como o pai já havia falecido, Jorge era um dos esteios da casa. “Eu era a caçula e ele sempre cuidou muito de mim. É muito duro até hoje”.
A primeira certidão de óbito indicou que o rapaz teve uma “ferida transfixante do tórax, com lesão do pulmão e do coração; hemorragia interna consecutiva”. O exame dos legistas indicaria que ele tomou um tiro pelas costas.
Mesmo depois da morte, a enfermeira recorda que a família ficou com medo porque os agentes faziam visitas e perguntas frequentes. Foi preciso mudar de casa. Sueli entende que o tratamento envolveu também racismo. “Nós somos uma família de negros, moradores da periferia. Não houve respeito nenhum pelo Jorge e por nós. Meu irmão queria fazer medicina para cuidar da gente”.
Depois da perda, Sueli resolveu cursar enfermagem para também cuidar da família. Para ela, a nova certidão de óbito ajuda a contar a história de forma mais justa.
A enfermeira quer que as futuras gerações entendam que Jorge era um jovem operário e estudante idealista. Mais do que a foto em preto e branco, ela quer defender a história de Jorge para que ajude a seus filhos e netos andarem de cabeça erguida. Não serem perseguidos pela cor da pele ou pelo que pensam.