As sentenças proferidas ao longo dos anos pelo juiz José Eduardo Franco dos Reis, que enganou o sistema judiciário vivendo como o nome fictício de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield não serão automaticamente anuladas — mas podem, sim, ser questionadas caso a caso.
Isso é o que explica o advogado e especialista em Direito Constitucional, Lélio Aleixo Araújo Soares, ao comentar o caso do magistrado aposentado que forjou ser um descendente de lordes ingleses por mais de 40 anos.
Quem é José Eduardo Franco dos Reis?
Nascido em Águas da Prata (SP), em 1958, José Eduardo criou a identidade de Edward Wickfield em 19 de setembro de 1980, quando obteve documentos falsos em um posto da Polícia Civil. Na época, a ausência de bancos de dados eletrônicos e a falta de integração entre órgãos públicos facilitaram a fraude.
Com a nova identidade, ele ingressou na Faculdade de Direito da USP, em 1988, e foi aprovado no concurso da magistratura paulista em 1996, onde construiu uma carreira aparentemente exemplar. Chegou a ocupar a titularidade da 35ª Vara Cível de São Paulo, no Fórum João Mendes, até se aposentar em 2018.
Durante todo esse período, manteve também a vida sob o nome verdadeiro, usada apenas em relações familiares. Já na vida pública, cultivava o personagem do “lorde inglês”, com histórico inventado e trejeitos de erudição.
A descoberta pela biometria
A farsa começou a ruir em outubro de 2024, quando ele foi ao Poupatempo da Sé solicitar uma segunda via de seu RG falso. O sistema biométrico AFIS/ABIS identificou que as digitais do suposto Wickfield eram idênticas às de José Eduardo Franco dos Reis.
O alerta automático levou à abertura de uma investigação do Ministério Público de São Paulo, que confirmou a duplicidade de identidades e a fraude documental mantida desde os anos 1980.
Processos e laudo psiquiátrico
José Eduardo foi denunciado por falsidade ideológica e uso de documento falso.
Sua defesa, conduzida pelo advogado Alberto Toron, alegou que ele sofria de Transtorno de Personalidade Esquizoide, o que o tornaria inimputável.
No entanto, o Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (IMESC) concluiu que o juiz era plenamente consciente de seus atos, descartando a hipótese de incapacidade mental.
Enquanto responde aos processos — que tramitam sob sigilo —, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) restabeleceu temporariamente o pagamento de sua aposentadoria, que em fevereiro de 2025 chegou a R$ 142 mil líquidos, alegando necessidade de regularização cadastral após a suspensão de seu CPF.
E agora: o que acontece com as sentenças?
A principal dúvida que o caso levanta é o que fazer com as milhares de decisões proferidas pelo juiz sob identidade falsa. De acordo com o especialista Lélio Aleixo Araújo Soares, é possível questionar as sentenças, mas isso não ocorrerá de forma automática.
“Em tese, poderá ser reconhecida nulidade por vício na investidura, já que o cargo foi obtido com base em falsidade ideológica. Mas cada parte precisaria alegar nulidade no respectivo processo, e o tribunal avaliaria caso a caso”, explica o advogado.
O sistema jurídico brasileiro tende a preservar decisões já consolidadas para evitar insegurança jurídica. Isso significa que apenas processos ainda em andamento poderiam ser diretamente contestados por ausência de juiz natural.
Já as ações encerradas e transitadas em julgado só poderiam ser reabertas por meio de ação rescisória, dentro do prazo de dois anos, e desde que comprovado vício absoluto na investidura.
“Mesmo que ele tivesse formação legítima em Direito, o cargo foi exercido com base em identidade falsa. Assim, o TJ-SP pode reconhecer a usurpação da função e rever decisões, mas sem anulação em massa. Cada caso precisaria demonstrar prejuízo ou nulidade estrutural”, complementa Soares.
Consequências possíveis
Se o Judiciário confirmar que o cargo foi ocupado de forma fraudulenta, as sentenças do juiz poderão ser impugnadas individualmente — especialmente em casos ainda sem decisão definitiva.
Além disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou a Corregedoria do TJ-SP podem abrir vias administrativas para reanalisar processos e redistribuir ações julgadas por ele, caso se entenda que houve violação ao princípio do juiz natural.